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O estereótipo da negra raivosa

Atualizado: 8 de fev. de 2023

Por Juliana Kaiser

O dia 25 de julho se aproxima. E, para as mulheres negras envolvidas com a pauta étnico racial, há um chamamento para nos aquilombarmos. Mesmo que não seja exatamente organizado, sabemos que nesse dia, muitas de nós vão enviar mensagens com o punho cerrado para as amigas e também um coração, porque, apesar de tudo, esses corpos são suscetíveis ao amor.

Mas é justamente nessa data que me vem a reflexão sobre o estereótipo que nos cerca: o mito da negra raivosa. Para quem me acompanha aqui, sabe que minha primeira formação é em História da Arte e é da arte que alimento o meu imaginário e minha iconografia cotidiana. Eu vejo o mundo em imagens e é através delas que vou encontrando significados pela vida afora.

Tenho ouvido muitas histórias de mulheres negras no mercado sobre com em suas conversas de feedbacks esse estereótipo da negra raivosa aparece. Em geral, ele vem disfarçado de baixa pontuação em soft skills e como um empecilho para a tão sonhada progressão de carreira. Eu também já escutei esse estereótipo travestido de "Não gesticule tanto. Isso não é postura corporativa". Eu sempre fico imaginando o semblante de quem fornece esse tipo de feedback. Há um ar sereno na branquitude que ainda pretendo estudar. E cabe lembrar que quando menciono o termo branquitude, estou parafraseando a inspiração Cida Bento. Falo sobre um sistema hierárquico no qual algumas (talvez muitas) pessoas brancas entendam que estão num patamar acima em função da brancura de sua pele e de seus traços fenotípicos europeus.

Voltando ao Debret, essa pintura é a obra que eu mais utilizo para explicar o intrincado sistema colonial brasileiro e como a ideia da democracia racial é utópica. Na legislação da época, conhecida como Pacto Colonial, pessoas escravizadas não podiam usar sapato. Na cena, os senhores brancos são agraciados com uma brisa provocada por duas pessoas escravizadas de casa, uma delas conhecida historicamente como mucama. As crianças em primeiro plano estão nuas (o que não era usual na representação de crianças brancas no mesmo período histórico). Parece tão pitoresco, mas elas estão em primeiríssimo plano e recebem como benevolência dos senhores escravocratas sobras de comida. A narrativa é o melhor exemplo da construção da figura da empregada doméstica no Brasil. Parece um sistema bem azeitado e em conformidade, mas o resultado desse apagamento da individualização do sujeito por mais de 350 anos deixa marcas até hoje.

Nas relações de trabalho, essa desordem de papéis historicamente construídos na sociedade brasileira vem dando um nó, já que mulheres negras, impulsionadas pelo carnaval antirracista do #esg, estão avançando, mesmo que lentamente, às posições de liderança.

O que vejo é uma grande quantidade de chefes sem saber lidar com mulheres que até pouco tempo poderiam ser suas diaristas. E que agora, em função de políticas afirmativas como as Cotas e o ProUni, estão ocupando os mesmos espaços em elegantes escritórios. A gente pode lembrar o comentário da reitora daquela universidade pública: "Agora o aeroporto está igual a rodoviária". Carregado de preconceito, a frase é uma excelente ilustração para percebermos como essa mudança de cenário vem causando incômodo em quem é economicamente favorecido.

Para nós, mulheres negras, há mais um desafio posto. É necessário que utilizemos muita comunicação não violenta e linguagem afetiva para não ativarmos no outro o estereótipo histórico. Especialmente se estivermos numa posição em que a última palavra seja a nossa, moderar o tom, saber discordar apresentando fatos e dados pode facilitar a nossa jornada.

Definitivamente, a gente não tem qualquer controle sobre o que o outro pensa de nós, mas em se tratando de um marcador histórico tão potente na construção da identidade brasileira, agindo de forma mais estratégica, a gente mantém não só o nosso trabalho, mas a nossa saúde física e mental.

E julho, além de novembro, é tempo de comemorar as nossas vitórias. Celebremos, mulheres!


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